O TRANSCONSTITUCIONALISMO (IN)APLICÁVEL
AO DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE DA PUNIBILIDADE: A DUALIDADE
ENTRE A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO INTERNO
ÁREA DO DIREITO: Constitucional; Internacional
Público; Teoria do Direito.
SUMÁRIO: Introdução. I. Transconstitucionalismo –
1. Conceito – 2. Âmbito de aplicação – 3. Casos relevantes. II. O discurso
constitucional contemporâneo – 1. Neoconstitucionalismo e a
Constitucionalização do Direito Penal – 2. Expansão da proteção judicial dos
direitos diante da internacionalização – 3. Controle de constitucionalidade e o
controle da convencionalidade das leis. III. Tensão entre o direito
internacional público e a soberania estatal – 1. Corrente monista nacionalista
– 2. Corrente dualista. IV. Princípios e regras: uma busca (im)prescindível de
critérios distintivos – 1. O polimorfo discurso na teoria jurídica - 2.
Importância da distinção metodológica no cenário transconstitucional: 2.1.
Regras como enunciados prescritivos; 2.2. Princípios como deveres aplicáveis prima
facie
RESUMO
O presente estudo tem como escopo central
demonstrar que não se deve mais reduzir o campo da expressão constitucionalismo
ao movimento capaz de limitar o poder do Estado e tutelar os direitos
fundamentais por meio da Constituição. Nos tempos hodiernos, ao mesmo tempo em
que se nota uma maior inserção do Brasil no cenário internacional, também se
tornou vulnerável às decisões dos Tribunais Internacionais. Reconhecendo a
importância do tema e analisando casos práticos, inclusive envolvendo uma
condenação fixada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, cabe à
comunidade jurídica nacional e internacional passar a reconhecer a existência
de um novo movimento chamado de transconstitucionalismo, uma nova forma de ver
a vida e olhar para o mundo.
PALAVRAS-CHAVES: Constitucionalismo. Direitos fundamentais.
Constituição. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Transconstitucionalismo.
ABSTRACT
This study is
scoped central demonstrate that one should not reduce further the field of
expression constitutionalism movement capable of limiting state power and
protect the fundamental rights through the Constitution. In modern times, while
we note a greater insertion of Brazil in the international scene, has also
become vulnerable to the decisions of international tribunals. Recognizing the
importance of the topic and analyzing case studies, including a conviction
involving fixed by the Inter-American Court of Human Rights, it is for the
legal community through national and international recognition to the existence
of a new movement called transconstitutionalism, a new way of seeing life and
see the world.
KEYWORDS: Constitutionalism.
Fundamental rights. Constitution. Inter-American Court of Human Rights.
Tranconstitutionalism.
INTRODUÇÃO
“Car toute argumentation vise à l’adhésion des
esprits et, par le fait meme,
suppose
l’existence d’un contact intellectual”
Chaim Perelman e Olbrechts-Tyteca
O
século XX foi marcado por vicissitudes históricas e atrocidades bélicas. Os
historiadores tiveram e ainda têm muitas anedotas para divulgar sobre fatos
ainda desconhecidos ou mal explicados. No entanto, não se pode negar que
precisávamos passar pela devastação das bases jurídicas, pela desconsideração
com o que se pode considerar como humano, pela veleidade daqueles que
juridicamente estavam legitimados para a assunção quase eterna do poder.
Ao
passar deste quadrante visceralmente visto como sanguinolento e sombrio,
especificamente do ponto de vista fático-contextual, não é à toa que se costuma
associar a ruptura de um processo de adaptação social como a Sociedade, a
Cultura, e se passa a dar importância às mudanças sofridas e vividas pela
própria dogmática jurídica. Os intérpretes, os juristas, os jurisconsultos ou
técnicos do Direito tinham de dar uma resposta adequada aos acontecimentos até
então experimentados. Não estava mais sendo possível esconder e justificar os
males do nazismo e do fascismo, o que também fortaleceu a atividade
jurisprudencial no sentido de revisar as suas decisões.
Agora,
no alvorecer do século XXI, uma nova vereda se descortina, como um horizonte
incólume, imune, infenso a qualquer tentativa de fechamento. Vive-se na melhor
época, no melhor estágio de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, de angústia, por
vezes retroalimentada pela imensidão que se transformou o caldeirão
gnosiológico conhecido como a Ciência do Direito.
Com
isso, apenas para estreitar o alcance do que será desenvolvido nas próximas
linhas, tentar-se-á dedicar alguns esforços acerca do ainda novo e pouco
elaborado transconstitucionalismo aplicável ao Direito Penal, sobretudo no que
diz respeito à pertinência metodológica em se trabalhar com os princípios e
regras, evitando-se, não obstante – a banalizada classificação doutrinária que
se consagrou na comunidade jurídica brasileira e, sim, preconizando-se o cotejo
analítico-diferencial entre as normas retromencionadas, para que não fiquemos
reféns do pragmatismo, do oportunismo dos tempos e da conveniência derivada do
subjetivismo.
Parte I
TRANSCONSTITUCIONALISMO
A
partir do reconhecimento de que o constitucionalismo traduz uma miríade de
alterações estruturais com o condão de engendrar a sociedade moderna[3], também é
plausível sustentar o nítido processo de diferenciação sistêmico-funcional
coexistente na sociedade que, justamente por sua fragmentação decorrente das
diversas visões de mundo que, individual e sectariamente, não podem ter posição
privilegiada[4], mas só a
partir de um cotejo racional e multicêntrico.[5]
Após
a II Guerra Mundial (1945) e a promulgação da Declaração Universal de Direitos
Humanos (1948), o mundo jurídico ficou ciente das porvindouras e possíveis
transformações. No campo teórico, tornou-se indisfarçável a total
incompatibilidade com modelos anteriores de como um Estado de Direito poderia
se manter incólume diante do seu passado infame. Tirante a confusão imanente e
até candente dos Tribunais e da doutrina em se confundir a psicologia e a
sociologia, com a filosofia moral e a filosofia política, deveras o positivismo
foi a tentativa de se legitimar, em alguma medida, os atos emanados pelo
Estado, fortificando a chamada pureza (Die Reinheit) no modo de se
manejar a epistemologia jurídica, pureza esta cujo princípio metodológico
fundamental é a libertação da ciência jurídica de todos os elementos que lhe
sejam estranhos, mesmo quando possuam estreita conexão[6].
O
fato é que o mentor do positivismo jurídico intentou criar um método puro
(princípio da pureza) e objeto cognoscente com enfoque específico (norma
jurídica). Deve ser alijado da ciência jurídica tudo que não pertença ao objeto
de estudo do Direito, objeto este cujo pilar básico seria a racionalidade
científica desvinculada dos juízos morais ou éticos[7], mas deferente
a juízos de fato[8], o que serviu
de sustentáculo para que os juristas fizessem mesuras ao legalismo
estabelecido, inclusive rechaçando, exprobando, em regimes revolucionários[9], a norma
fundamental (pressuposta), que representa o fundamento de validade de outra
norma (posta)[10] e,
mais ainda, de toda a ordem jurídica[11].
Em
que pese todo o esforço de se buscar criar uma ciência com atributos análogos
às ciências exatas, permeada de objetividade e neutralidade interpretativa,
ressalte-se que o positivismo, seja o legalista ou o normativista, foi
categoricamente mitigado[12].
Veja-se o caso da tirania nazista e do fascismo italiano, movimentos políticos
reprochados internacionalmente pelas agruras e atrocidades acometidas aos
direitos humanos e fundamentais, ambos compondo a chamada banalidade do mal[13].
Para a superação da barbárie até então vivenciada, foi preciso de muita luta e
resistência filosófica[14].
Conforme arguto pensamento de Rudolf von Jhering, o fim do Direito é a paz, e o
meio para que isso ocorra é a luta[15].
Quando a superação do regime foi atingida, decaiu o positivismo kelseniano[16],
abrindo espaço para que um novo modo de pensar o Direito[17] começasse
a soerguer a Ética, a Justiça e a Moral, elementos permanentes para manter o
dístico de todo ser humano: a dignidade[18].
Com
o fim da Segunda Guerra Mundial, foi difícil mesurar a colossal extensão do que
tinha acontecido.[19] De
qualquer forma – o significado da vitória é até hoje apreendido. Com a batalha
vencida e a superação do totalitarismo e da usurpação da vida, com a
aniquilação de coisas terríveis como a que ocorriam entre 1939 e 1945[20],
uma nova luta passou a ser o mote de quase todos os países ditos civilizados e
democráticos.
Qual
seja, a defesa dos direitos humanos e fundamentais. Assim, tendo em vista que
estes últimos passaram a ter um lócus privilegiado em Constituições e, em
relação aos primeiros, principalmente, em documentos de matiz internacional,
plausível preconizar que todas as Nações evitem desobedecê-los ou violá-los. A
tese de que hoje se vive em um contexto humano policontextural e em uma
sociedade multicêntrica, cujos complexos problemas não se resolvem mais
avocando a soberania interna e territorialmente delimitada se convencionou
chamar de transconstitucionalismo. Sendo assim, impende que se
discorra a propósito de seu conceito, limites de sua incidência e algumas
implicações práticas.
1. Conceito
Transconstitucionalismo,
constitucionalismo de níveis múltiplos ou constitucionalismo multiplex é, em
resumo – o reconhecimento de que existem problemas de matiz constitucional que
ultrapassam o contorno territorial delimitador para que a soberania estatal
seja exercida.[21] Não
diz respeito tout court ao fato de cada ordem jurídica possuir
uma Constituição.[22] De
tal modo, supera-se a vetusta concepção de que controvérsias constitucionais
internas estejam imunes à tendência de soluções pelo entrelaçamento da
comunidade internacional, ensejando a elaboração de uma teoria da
interconstitucionalidade[23].
Ressalte-se que a soberania (Carta das Nações Unidas, art. 78)[24] de
cada Estado-Nação continua hospedada no invólucro principiológico do direito
internacional público, não sendo despiciendo dizer que não pode ser desprezada prima
facie.
Todavia,
a novidade só ganhou um componente a mais, que está no modo como estão sendo
travadas as relações de interpenetração entre ordenamentos díspares, vis-à-vis
já terem existido pactos, como o Tratado de Westfália de 1648, em que se era
perceptível a ligação entre o direito internacional clássico e o direito
estatal.[25] Por
via de consequência, o que passa a ser entronizado na área nuclear do debate é
a integração entre as Nações, a cooperação pacífica de sistemas jurídicos e a
caudal corrosão da cultura do atraso. Uma sociedade de risco e extremamente
complexa não pode ficar dependente de soluções regionais. A conversação passa a
ser a bola da vez.[26]
A
despeito disso, como todo princípio ou regra jurídica, devem ser tratados
separadamente e a partir de critérios metodológicos próprios[27],
com vistas de serem evitados desatinos analíticos como, por exemplo, o oblívio
e desconsideração do efeito vinculante (Bindungswirkung) de tratados
internacionais de direitos humanos que, como acentua sólida doutrina, na
sistemática brasileira, quando aprovados, passam a desfrutar de aplicabilidade
direta e imediata, incorporando-se ao bloco das normas equivalentes às emendas
constitucionais, mesmo que não tenham passado pelo rito procedimental estampado
no art. 5º, §3º da CF/1988.[28]
Bastaria,
nesta esteira, que a jurisprudência e a própria doutrina fizessem uma absorção
da quintessência do que apontado no art. 5º, §2º da Constituição brasileira de
1988[29],
ao dizer que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.[30]
A
lógica do raciocínio esposado na defesa da tese é fundamentada de forma seminal
pelo internacionalista Valerio Mazzuoli: “se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela
elencados ‘não excluem’ outros provenientes dos tratados internacionais ‘em que
a República Federativa do Brasil seja parte’, é porque ela própria está a
autorizar que esses direitos e garantias internacionais constantes dos tratados
de direitos humanos ratificados pelo Brasil ‘se incluem’ no nosso ordenamento
jurídico interno, passando a ser considerados como se escrito na Constituição
estivessem. É dizer, se os direitos e garantias expressos no texto
constitucional ‘não excluem’ outros provenientes dos tratados internacionais em
que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que tais
instrumentos passam a assegurar outros direitos e garantias, a Constituição ‘os
inclui’ no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de
constitucionalidade’”.
Com
espeque nos escólios doutrinários de sólida cientificidade e na verificação
abundante do novo rumo dos tempos hodiernos, que exige um vigoroso e efetivo
diálogo de fontes[31] e
abertura sistêmica, particularmente de ordens jurídicas, só nos resta vivenciar
a galvanização, a subsistência fática e o recrudescimento do controle de
convencionalidade das leis, como enfatizou a própria Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, ao
declarar em sentença, in verbis: “Quando um Estado
ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como
parte do aparato do Estado, também estão submetidos a ela, o que lhes obriga a
zelar para que os efeitos dos dispositivos da Convenção não se vejam mitigados
pela aplicação de leis contrárias a seu objeto (...) o Poder Judiciário deve
exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade das leis’ entre as normas
internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o
tratado, mas também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte
Interamericana, intérprete última da Convenção Americana”.[32]
Esclareça-se,
por oportuno, que se vive em um vertiginoso processo de transformação ou
transmudação dos dogmas antigos do direito internacional público. Se a ótica
vetusta era a de se ter em mira o papel inconcusso do princípio do domestic
affair (ou da não intromissão, não intercessão), cuja função era
limitar o direito das gentes às relações entre Estados em um
contexto de uma sociedade internacional formal, hoje e não muito antigamente,
por influência e a partir da inserção dos países no sistema interamericano de
direitos humanos e, singularmente, do Brasil, mudou-se o ângulo do castrado
discurso internacional para a criação e manutenção do alvissareiro princípio do international
concern, que, em linhas mestras e gerais, consubstancia a preocupação
internacional em dar vazão e efetividade aos direitos e liberdades fundamentais
de todos os Estados partícipes de um sistema mínimo de proteção internacional
dos direitos humanos.[33]
No
caso do princípio da soberania nacional, mesmo resguardando o seu caráter
monolítico de internamente fazer com que os Estados garantam aos indivíduos sob
o jugo de sua jurisdição o gozo de um plexo catalogado de direitos esculpidos
em tratados, a soberania cifra-se, por sua vez, ao dever estatal de aceitar a
fiscalização de órgãos internacionais com competência para verificar se há ou
não conformidade de sua atuação com os atos internacionais dos quais seja
signatário.[34]
Se
o constitucionalismo é considerado o movimento pelo qual se consagrou a
limitação do poder estatal, a tutela dos direitos fundamentais e a ideia de
supremacia da Constituição em face da força da Lei (Gesetzeskraft) ou da
supremacia do Parlamento, o transconstitucionalismo aparece como uma vereda
dialógica entre o direito internacional e o direito constitucional interno. Se
a Lei Fundamental de um país com tradição romano-germânica se impõe como o
fundamento de validade de uma ordem normativa (Der Geltunsgrund einer
normativen Ordnung)[35],
isto é – daquela ordem social territorialmente erguida, com poder originário de
mando e povo, a essência do direito internacional é, como se pressupõe, direito
no idêntico sentido que o direito estadual (Recht in demselben Sinne ist wie
das staatliche Recht).[36]
A
distinção só exsurge quando se busca dar prevalência a um e a outro, tornando a
tarefa de todo intérprete um tanto quanto árdua. Não obstante, inconteste o
fato de que todo o pensamento jurídico não pode ser arbitrado somente pelo
pragmatismo, por aquilo que aparenta servir ao conclamo da praxe, mas que
busque esteio no labor científico e na coerência argumentativa, desnudando
expressões herméticas, descobrindo as raízes históricas dos institutos, sem
olvidar da ilustre missão de atribuir rigidez e precisão aos conceitos até
então investigados. Eis o papel da doutrina.[37] Nos
dizeres de Rudolf von Jhering: “Die wissenschaft darf um, wahrhaft praktisch zu
sein, sich nicht auf das Praktische beschränken.”[38]
2. Âmbito de
aplicação e limites
Entender
a pertinência de como deve ocorrer a aplicação de algo e a
incidência de suas balizas é algo inexoravelmente curial. Independentemente da
matéria que se cuide, não basta procurar esmiuçar as sutilezas terminológicas,
os seus mínimos detalhes e identificar ramificações compatíveis com os fatos
cambiantes, estes traduzidos em sensações, sentidos, consequências. Não é
preciso ir muito longe para superar o paradigma kantiano de que é impossível
deduzir valores da realidade, e de que entre o julgamento dos fatos e os
valores há uma barreira inexpugnável. Para aqueles que adormecem sob o efeito
mais hermético do sonífero kantiano, talvez seja preciso parar por aqui, em
virtude de ipso facto caminharem sendo sustentados por uma das
pernas. O efeito de tamanho descuido só pode ser a queda fatal rumo ao abismo.
Todavia,
quem conseguiu identificar o sofístico raciocínio lastreado no quase
ultramontano estamento filosófico, saberá que a percepção sensível, por mais
primária e aparentemente acessória, pode alterar a compreensão de dado objeto,
corpóreo ou não. Sendo assim, a intelecção sensorial de um objeto dependerá da
própria realidade em que o sujeito cognoscente estiver incluído. Sem parcas
dúvidas, caso duas pessoas se dispusessem a vasculhar os meandros de um dado
qualquer da realidade, invariavelmente umas delas poderá estar com um
afastamento do eixo teórico e do eixo empírico bastante relevante, o que
fornece esteio para o que se chama de paralaxe cognitiva.
Com
o objetivo de afastar maiores excursões, o fato é que buscar estabelecer
limites a algo e traçar a epistemologia de sua aplicação constitui o
consectário intuitivo de todo aquele que se debruça por um problema real ou
circunstância fundamental. Afinal, o transconstitucionalismo não é em si mesmo
um problema, mas um fato. Uma contingência dos tempos modernos, assim como a
judicialização da vida e a interconexão bastante eloquente com o chamado
ativismo dos juízes.
Ao
se fazer um paralelo sutil entre o ativismo judicial e o transconstitucionalismo,
entrevê-se, ao menos in thesi, um novo instrumento para o controle
das decisões judiciais, já que os limites jurídicos não estariam mais nas leis
internas e na própria Constituição. Aliás, independentemente do sistema
jurídico adotado por um país e das suas singelezas estruturais, estribadas
muitas vezes em idiossincrasias incoerentes e por filigranas históricas
avassaladoras, não se pode alterar o fato de que a soberania esfacelou-se. Com
isso, o dogma da supremacia judicial e da prevalência da Lei Maior parecem não
mais cultivar de absoluta indenidade. Neste caminhar, se o ativismo e a
judicialização são sobejamente escrutinados e estudados em alguns países,
talvez em um plano menos articulado e homogêneo[39],
mais atenção ainda mereceria a fenomênica transconstitucionalidade.
A
dogmática jurídica brasileira e mundial infelizmente não se deu conta de que
preconizar a existência de limites e a circunscrição do âmbito de aplicação do
transconstitucionalismo é para justamente evitar o acirrado debate entre o
direito internacional público e a autonomia interna decorrente da ordem
jurídica de cada país. O escopo principal é rechaçar a cólera do viés puramente
ideológico de cada sistema político, e calcar a discussão em critérios
objetivos, tais como a dualidade funcional transconstitucional, qual seja: i) a
pretensão homogeneizadora; e ii) a pretensão normativa reparadora.
O
primeiro elemento de aplicação do transconstitucionalismo é a verificação de
estruturas normativas compatíveis ou entrelaçadas. Ou seja, a pretensão de
caráter homogêneo enseja a busca por sistemas jurídicos que acolham decisões
que sufraguem o novo modelo de constitucionalismo, modelo este que entende que
deva haver uma relação salutar entre ordens jurídicas e, mais ainda, uma
relativização da soberania (armadura jurídica) para que se reestabeleça o ideal
da deusa Thêmis. Afinal, até as Cortes de Justiça de cada Nação podem ficar
sujeitas à falibilidade, não raras vezes incentivada por injunções políticas,
econômicas e dos temidos grupos de pressão. Este não é o mundo dos sonhos, mas
também não pode ser o inferno dantesco.
O
segundo elemento de aplicação é de caráter normativo. Como se tentou
demonstrar, sem uma relativa simetria das formas de direito não há espaço para
o transconstitucionalismo.[40] Neste
diapasão, a pretensão normativa também tem um viés reparador, quer dizer, de
restituir ou tentar compensar um grave dano a um direito fundamental estatuído
em um documento de colorido internacional ou que invoque um ideário de proteção
aos direitos humanos. Assim, não poderia o Supremo Tribunal Federal brasileiro
ou a Corte Suprema de Justiça argentina desconsiderar o fato de que mesmo uma
decisão emanada por estas Cortes não poderia deixar de passar pelo crivo
judicial da Corte Interamericana de Direitos Humanos ou pelas recomendações da
Comissão Americana de Direitos Humanos. Afinal, o trânsito em julgado de uma
decisão, especialmente no último grau de jurisdição, não pode significar a
melhor solução.
Já
dizia o Nelson Hungria: “O Supremo Tribunal Federal tem apenas o privilégio de
errar por último”. Com isso, quer-se salientar que seria sable aux yeux (colocar
areia nos olhos) ou incutir um cisco no olho referendar categoricamente que não
há possibilidade de uma decisão incorreta, injusta ou contrária aos direitos
fundamentais e aos direitos humanos, mesmo quando advier do guardião da
Constituição, com uma competência tão fluídica e embaraçada como a do Supremo
Tribunal Federal brasileiro.[41]
Ainda
vigora timidez institucional e inapetência quanto ao acolhimento das novas
tendências cotidianamente verificadas no campo internacional, porém já é
possível auscultar um conjunto de casos assaz paradigmáticos, que começam a
romper relações com o atroz anacronismo.
3. Casos relevantes
Não
é difícil encontrar, sobretudo no panorama internacional, decisões proferidas
por Cortes de Justiça ou órgãos colegiados dispostos para dissolver
controvérsias que superam o além-mar de cada país. Indiscutível que ainda não
se sistematizou precisamente o impacto das referidas decisões e qual é o grau
de vinculatividade[42],
fazendo com que países e as próprias instituições (Legislativo, Executivo e o
Judiciário) cumpram as determinações promanadas. Com o arriscado intento de
satisfazer minimamente a curiosidade dos mais preocupados através de uma visão en
passant, serão analisados dois casos selecionados por sua relevância e
peculiaridades, porquanto suas conclusões serem ainda inconsistentes, subjaz um
apelo implícito por uma crítica e sistematização.
O
primeiro caso a ser decodificado é o da “Guerrilha do Araguaia”, em que a Corte
Interamericana de Direitos Humanos não teve dúvida em condenar o Brasil pelos
atos desumanos, mortíferos e deletérios durante o período da ditadura militar
(1964-1985), especificamente por ter sido omisso ao não diligenciar e averiguar
o desaparecimento de várias pessoas. A condenação teve como mote a verdade e a
memória, ambos pedaços indissociáveis para a formação e historicidade da
existência humana.[43] A
CIDH realizou um controle de convencionalidade da legislação interna brasileira
e concluiu que a Lei da Anistia é incompatível com a Convenção Americana de
Direitos Humanos.
De
tal sorte, reputa-se incoerente e contraditória a decisão do Supremo Tribunal
Federal no bojo da ADPF n. 153, haja vista ter julgado improcedente a ação e
ter interpretado como constitucional a Lei n. 6.683/79, que conferia anistia
aos agentes estatais responsáveis por graves violações aos direitos humanos
durante o regime de exceção brasileiro, assomando, também, a extensão aos
crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos
durante o período de paralisação do relógio democrático.
Ad
argumentandum tantum, urge uma reflexão teórica e prática,
culminando com uma pergunta desafiadora. A Constituição do Brasil estabeleceu a
possibilidade de o depositário infiel ser preso (art. 5º, LXVII). Mesmo assim,
o Excelso Supremo Tribunal Federal acatou e respeitou o art. 7º da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que rechaça terminantemente a possibilidade
depositário, independentemente do depósito, ser levado ao cárcere. Para tanto,
editou a Súmula Vinculante n. 25, que diz: “É ilícita a prisão civil de
depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.
Ora,
se os direitos fundamentais não estão tipificados de forma exauriente e na
própria Constituição Federal de 1988 há uma cláusula de abertura material[44] entalhada
no art. 5º, §2º, não há motivo para tanto receio de preservar a própria
soberania estatal. Antes de se fazer uma tacanha interpretação conforme à
Constituição (Verfassungskonforme Auslegung), impõe-se uma interpretação
conforme os direitos fundamentais (Grundrechtskonforme Auslegung).[45] Se
o poder constituinte originário tomou a decisão de interiorizar uma norma de fattispecie ampla,
sem pronunciamentos estanques e um prejugé (viés, direção,
tendência) pluridimensional, as razões descambam para o singelo alumbramento.
Tamanha façanha é digna de encômios.
O
segundo exemplum in contrarium à regra geral de que basta aplicar
o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (CF/88, art. 5º, XXXV),
ao dispor que nenhuma lesão ou ameaça de lesão ficará imune da proteção
judicial, restou conhecido como “Caso Ximenes Lopes versus Brasil”. No introito
de outubro de 1999, Damião Ximenes Lopes fora acometido por uma crise,
levando-o à quase compulsória internação hospitalar. Após ter ingressado nas
dependências da Casa de Repouso de Guararapes, única e pequena clínica
psiquiátrica localizada no Município de Sobral, Estado do Ceará, fora acometido
por um surto de cólera, o que fez com que os funcionários da clínica
utilizassem da força bruta para constrangê-lo e imobilizá-lo.
A
sua mãe não hesitou em visitá-lo, encontrando-o em um estado deplorável,
coberto de fezes, sangue e hematomas pelo corpo. À cata de uma solução, saiu em
busca de ajuda dos médicos e enfermeiros da referida clínica. Naquele mesmo
fatídico e horripilante evento, Damião Ximenes Lopes faleceu. Posteriormente ao
horrendo desfecho do fato narrado, incumbiu à família da vítima encabeçar uma notitia
criminis perante a autoridade policial, uma denúncia ante a Secretaria
de Saúde e na Comissão de Direitos Humanos do Ceará. O inquérito policial foi
instaurado e tão somente sido incoada a peça acusatória, pelo Parquet, em
27 de março de 2000.
Tendo
em vista o profundo estado inercial da justiça brasileira, a irmã da vítima
apresentou uma petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos contra o Brasil, tendo como co-peticionária
a organização não governamental Centro por la Justicia Global.
Tendo a Comissão entendido que tinham sido violados os arts. 4º (direito à
vida), 5º (direito à integridade física), 8º (direito às garantias judiciais) e
25 (direito à proteção judicial) do Pacto de San José da Costa Rica, recomendou
que o Brasil tomasse providências.
Constatadas
as inequívocas violações aos direitos humanos e o não atendimento das
recomendações, preferiu a Comissão submeter o caso à CIDH. No dia 04 de julho
de 2006, o Brasil foi condenado por violação do direito à vida, integridade
física e sonegação de jurisdição pela injustificada demora na prestação da
tutela penal e cível.[46]
Em
que pese todos os argumentos despendidos e a fundamentação principiológica
extraída pela leitura do Direito Constitucional e do próprio Direito
Internacional Público, no primeiro caso retrocitado, sabe-se torrencialmente
que o Brasil não encampou a tese prevista no art. 62 da CIDH, isto é, a de
aceitar de forma expressa a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos
Humanos como pretório competente para julgar casos de vilipêndio a direitos
humanos ocorridos no País. Isso só passou a ocorrer em 1992[47].
Com
isso, conclui-se que o Brasil não está, em tese, compelido a sujeitar-se a um
processo instaurado na CIDH sobre fatos ocorridos antes do reconhecimento da
sua jurisdição. Não é essa, todavia, a leitura mais consentânea do princípio do
acesso à justiça internacional e da dignidade da pessoa humana, esta cujo
caráter fluídico e plástico[48] permite
ao intérprete e aos Tribunais de Justiça, especialmente os de jurisdição
supranacional, uma margem de manobra (Spielraum).[49]
Destarte,
o transconstitucionalismo pode servir tanto para coibir práticas violadoras dos
direitos humanos, penalizando, por intermédio de uma decisão condenatória, por
exemplo, condenando o próprio Estado ao pagamento de uma indenização, por ter
operado no sentido de violar direitos humanos, garantias processuais penais,
vergastar os princípios do direito processual penal (die Grundsätze des
Strafverfahrensrecht) e de índole criminal, o que repercute seriamente no
direito fundamental à liberdade do cidadão e no princípio da presunção
de inocência ou da não culpabilidade (Unschuldsvermutung)[50],
além do princípio que veda um processo com dilações indevidas.
Nesta
esteira, não basta uma decisão judicial ou acórdão de um Tribunal considerar as
leis de regência e a Constituição reinante, mas que a era da
internacionalização dos direitos humanos e do universalismo tornaram-se uma
realidade constante. A superação do establishment ainda é
gradativa, mas os passos estão sendo dados.
Entretanto,
não cabe ao tranconstitucionalismo controlar a punibilidade ou incutir
parâmetros decisórios à judicatura brasileira, principalmente na seara da
dosificação apenatória, isto é – no campo da dosimetria da pena aplicada àquele
que delinquiu. Permitir tamanha abertura seria erodir toda uma tradição
legislativa, histórica e até mesmo dos precedentes. O que pode ocorrer é uma
“revisão” das sentenças proferidas, só que tal releitura ficaria sobremodo
limitada ao terreno da indenização cível, não se imiscuindo no campo do
trânsito em julgado e, por sua vez, na execução da decisão judicial.
Como
os critérios de julgamento e de aferição probatória dependem do ambiente em que
o aparato do Poder Judiciário se encontra e até mesmo do problema da morosidade
e da crise numérica referente à quantidade de processos, seria questionável a
recomendação no sentido de haver uma permanente prevalência da sentença emanada
da Corte Interamericana de Direitos Humanos e não a prolatada pelo Supremo
Tribunal Federal, verbi gratia. O que pode ser auscultado ou
perquirido é qual das respostas, mesmo se céleres ou serôdias, é a mais
favorável ao indivíduo atingido no seu âmago.[51] Em
apertada síntese, não se pode determinar aprioristicamente o que deve
prevalecer, se a sentença da CIDH ou aquela advinda da Justiça brasileira. O
que se deve buscar é aplicar o postulado do princípio pro homine casuisticamente.[52]
Parte II
O DISCURSO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO
A Teoria do Direito é uma disciplina que sempre
trabalhou com a ideia de que a sociedade precisa de regras de conduta para
disciplinar a mercancia, os negócios, as relações primitivas, a vida como um
todo. Há uma abundante maneira de identificar-se uma significativa constatação:
os elementos ser (ôntico) e o dever-ser (deôntico) sofreram profundas
transformações. Por sua vez, o know-how do jurista seguiu a
caminhada da alternância, da mudança. A singular natureza do presente,
portanto, é asseverar que as Ciências Jurídicas se espraiam a depender de cada
momento histórico e também da mentalidade jurídica, da apreensão que as pessoas
têm ou tiveram de sua existência e aplicação.
Não se está afirmando que o Direito deve ficar
dependente das circunstâncias do presente, das variações de humor, da
ciclotimia da Política, do interesse das maiorias. O pressuposto a ser
cimentado aqui é outro, qual seja, o de que cabe ao jurista implementar uma
metodologia nova de se manusear os textos legais, não a partir unicamente da
Lei, mas da Constituição. Esta não é mais um pedaço de papel (ein Stück
Papier)[53], mas o epicentro axiológico da cultura jurídica
dos povos.
O fato é que o Direito do século XX não conseguiu
dar respostas condizentes com a complexidade da sociedade, além de terem sido
insuficientes as explicações sobre o mal que remanescia das duas Grandes
Guerras. Ou seja, juridicamente era insustentável forcejar os horrores
praticados por líderes carismáticos ou ensandecidos como Hitler e Mussolini,
por exemplo.
Por conseqüência, a doutrina passou a se preocupar
com o invólucro ético e moral dos fatos juridicizados pelo Estado, leia-se: a
partir da incidência da regra jurídica[54].
Desde Montesquieu isso ficou mais do que claro. Os Poderes são seccionados para
que a distribuição das atividades seja mais efetiva e não haja anorexia de sua
legitimidade.
Dessa forma, cada membro tem sua competência
constitucional para legislar, aplicar a lei e executar a sua determinação.
Especialmente em uma res publica que vigora o sistema
romano-germânico, legalista ou legalitário, calcado na positivação legal em um
texto encartado e circunscrito através de um procedimento. A diferença básica é
que no Brasil, seguindo à risca o sistema adotado, há a prevalência das leis
sobre as decisões judiciais, diferentemente do que ocorre na América do Norte e
em grande parte da Europa Continental. Com isso, o juiz declarar ou dizer algo
processualmente não é dizer o Direito, mas é dizer o que seja de direito
(conforme a lei).
Mas há mais a considerar.
Mesmo após atravessarmos uma série de paradigmas e
modelos que concorreram para a construção do que chamamos de Estado Democrático
de Direito, temos de nos preocupar com o que chamamos “as correntes de
Ulisses”. Certamente é inesquecível a poética passagem do Canto XII da Odisséia,
em que Homero narra a volta de Ulisses ao reino de Ítaca após o massacre de
Tróia. Não obstante, a narrativa se centra em uma situação tortuosa e
tormentosa. O ilustre navegante teria de superar a tentação do ressoar melódico
das sereias, evitando, pois, o inexorável naufrágio da sua embarcação. Para evitar
tal lástima, ordenou que cada um dos seus subordinados tapasse os ouvidos com
cera. Além disso, determinou que seus grumetes o atassem, amarrassem-no a um
mastro, justamente para que se privasse do risco, mas não do prazer de ouvir o
lirismo musical.
O contexto que se coloca é que em um Estado de
Direito há limites e razões mínimas que possuem guarida no novo paradigma em
que nos encontramos. Hoje há um modelo superado do chamado positivismo, que dá
margem ao tão enaltecido pós-positivismo, quiçá nominado de novo
constitucionalismo. Significa dizer que, atualmente, a Constituição passa a
ser o centro do sistema jurídico, e que não basta averiguar se há o respeito ao
conteúdo formal ou material de uma regra infraconstitucional[55].
Pelo contrário. É dever daqueles que militam frente ao discurso jurídico da
cotidianidade respeitar a norma normarum de seu país. Eis o
nosso limite como lidadores jurídicos e preservadores da integridade do Direito[56].
Vive-se em uma democracia constitucional que nos
impõe um circulatório normativo insuscetível de disposição de quem quer que
seja. Todos se submetem à potestade derivada da Lei das Leis. Daí se conclui
que é dever dos juízes, promotores, advogados, promoverem o chamado discurso da
fundamentação (Begrundungsdiskurs). Leia-se, dever-poder e
não poder-dever. O resultado dessa cautela será a proteção do postulado da
experiência jurídica da Nação, uma garantia essencial para o desenvolvimento
contínuo do homem. Se este é o escopo (goal), é porque agora o
pensamento jurídico passou a estar comprometido com uma teoria do homem.[57] É
preciso de amor, de sacrifício, para que toda obra se edifique com bases
sólidas e bem sedimentadas.[58]
Vê-se, logo, ante o novo horizonte
descerrado e da cortina que se abriu que, considerando-se os aspectos
históricos e a contemporaneidade dos acontecimentos, não se pode deixar de
entrever a necessidade de se trabalhar com um discurso constitucional
diferenciado. As categorias interpretativas, os métodos, os princípios, o
instrumental normativo, o aparato legislativo, a estrutura institucional, a
teleologia mandamental e o arsenal teórico mudaram ou, mesmo não tendo sido
objeto de profunda alteração, passaram, sim, por um processo de enrijecimento
decorrente da tecnologia jurídica da atualidade.
A geração e, particularmente, a cultura
jurídica brasileira certamente não ficou imunizada, mesmo após a consolidação
das instituições e o estabelecimento sólido e consistente das teses jurídicas
tecidas. Ao contrário, es lebe die anschauungen (viva as
intuições), haja vista ter sido possível prever o que hoje se desfruta. Afinal,
testemunha-se a inoculação de um vírus disforme, sem paralelos, que grassou no
DNA do Direito, propiciando o que setor da comunidade jurídica critica e
repugna, mas não se pode negar, a mixagem teórica, o protagonismo judicial[59],
o polimorfismo doutrinário, o sincretismo metodológico[60] ou,
o que aqui se defende, o estrabismo interpretativo[61].
Portanto, para que se acompanhe
serenamente o tema ventilado até então, deve-se palmilhar pela vertente
multidisciplinar, como um verdadeiro caleidoscópio, desnudando os escaninhos do
hermetismo e da sisudez recôndita da ortodoxia procedimental. O propósito é
evitar que a obtusidade das formas de se olhar o status quo não
suplante, não sepulte ou não esconda a paralaxe interpretativa[62],
mas enalteça os movimentos recentes e aqueles não tão bem explicados, o que só
fornece fórceps para a edificação de um futuro mais bem compreendido ou quiçá
de um happy end.
1. Neoconstitucionalismo e a constitucionalização
do direito penal
Costuma-se associar à expressão
neoconstitucionalismo[63] uma
série de transformações vividas e sofridas na ciência do direito, que podem ser
identificáveis em maior extensão[64] e,
de maneira muito particular, no Brasil. Na literatura autorizada encontram-se
outras terminologias, tais como neopositivismo[65],
positivismo reconstruído, positivismo ético[66],
positivismo includente[67] ou
até referências no sentido da existência de neoconstitucionalismos.[68] Sem
falar, é claro, da interconexão percebida por alguns do que se apelidou de
ativismo judicial[69].
Afinal, se o constitucionalismo surgiu
com o objetivo de (de)limitar o Poder do Estado[70],
não é por acaso que se agregue à nomenclatura reformulada, somadas às suas
novas características e à própria judicialização[71],
à nova atitude empreendida pelos juízes.[72] Nem
tudo mudou, mas nada do que restou permanece o mesmo.[73] Destacar-se-ão,
todavia, quatro das transformações[74] supracitadas,
a título exemplificativo e em respeito à síntese que os limites textuais
exigem.
A primeira é a superação da ideia de
que a lei é a fonte principal do sistema jurídico (aspecto endonormativo), já
que com o esvaziamento do positivismo exegético (ou sintático) e o positivismo
kelseniano ou semântico, passou a vigorar a máxima de que a Constituição é a
ordem jurídica fundamental de toda a coletividade.[75] Se
o poder soberano se assenta no povo, não é por somenos razão que a democracia
política necessita também ser enraizada pelos escaninhos republicanos, estes
que possuem hospedagem especificada na Lei Fundamental. Desta forma,
reconhece-se, por consectário lógico-dedutivo, a força normativa da
Constituição[76] (Die
normative Kraft der Verfassung), o que induz todos os intérpretes e os
operadores do Direito a uma nova forma de manejar as engrenagens do processo
social de adaptação cogente: der Recht.
A segunda é o reconhecimento de
juridicidade dos chamados princípios, independentemente deles estarem calcados
em um suporte textual (texto legal) ou serem perceptíveis de forma implícita
através de várias modalidades interpretativas[77].
Agora, tanto as regras quanto os princípios possuem a mesma estatura de norma
jurídica, diferençando-se, entretanto – a partir do critério estrutural[78] e
da aplicação, e não da generalidade e da especialidade. Isto significa que a
diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau ou de natureza
quantitativa.[79] Com
isso, passa-se a valorizar métodos de decisão como a chamada ponderação[80] ou balanceamento (Abwägung)
que, junto com o princípio ou a máxima da proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitsgrundsatz)[81] acabam
por ter o condão de instrumentalizar os princípios, enquanto a subsunção possui
uma mola-propulsora para a aplicação das regras.
A terceira é sintetizada na
constitucionalização da vida privada[82] e
das relações sociais (aspecto exonormativo), o que é reforçado pela irradiação
dos efeitos imanentes à realização dos chamados direitos fundamentais, seja no
campo público ou privado. Quer isso dizer não apenas a introdução de uma
pletora de regras e princípios de caráter penal, tributário, cível,
trabalhista, agrário, previdenciário e outros na Lei Maior. Mas que toda a
gnosiologia constitucional, leia-se, as matérias disciplinadas pela
Constituição, passará(ão) a ter sobeja relevância, impelindo o intérprete
e todo o cultor do Direito a uma atitude prudente, qual seja, a de observar o
ordenamento com a lente constitucional, para que promova uma verdadeira
profilaxia normativa quando da aplicação e implementação das normas jurídicas.
A quarta é a chamada
jurisprudencialização ou precedentalização[83] do
sistema romano-germânico, também alcunhado como civil law, isto é –
a importância que passou a ter os precedentes judiciais e a atividade
pretoriana, notadamente à cata de definição de questões controvertidas na seara
doutrinária e política. Afinal de contas, como é cediço, o sistema legalista ou
legalitário é pautado pela positivação da lei em uma cártula (documento).
Porém, como restou demonstrado, a ideia de que, em princípio, o texto escrito é
a primeira e a mais importante expressão do direito passou a ser um pedaço da
verdade. Agora, a legalidade ganha contornos de justiciabilidade.[84]
Com isso, vê-se a hipertrofia da
interpretação judicial e a sua elástica pretensão modernizadora do direito
vigente, seja fixando novos entendimentos ou empreendendo soluções para cases ainda
não antevistos. Ao menos no que se refere à análise jurídica dos
termos, se tudo é linguagem, e esta é a pauta adotada neste texto, deve-se ater
à linguagem jurídica, associando, obviamente, a perspectiva interdisciplinar
que os problemas requerem. Em poder de sinopse, soluções complexas servem para
problemas complexos. Casos simples dependem de soluções simplórias. Todavia,
situações problematizadas pela complexidade, se forem resolvidas através da
simplificação serão futuras vítimas da erronia.
2. Expansão da proteção judicial dos direitos
diante da internacionalização
Hoje
há uma pretensão à sentença (Urteilsanspruch) como talvez não se
desejasse outrora. Todavia, esta pretensão ou vontade passou por nevrálgica
mudança, consistente no fato de que o papel da jurisdição restou ampliado.
Sendo assim, não pode a atividade jurisdicional ser reduzida à produção de uma
mera decisão quantitativa[85] de
uma autoridade judicial e, até mesmo, capaz de dissolver um litígio. Não. No
Estado Constitucional Democrático contemporâneo de Direito deve-se adotar a
premissa de que hoje há uma sólida teoria dos direitos fundamentais, dos
princípios constitucionais e acerca do controle de constitucionalidade.
Certamente,
a máxima de que a jurisdição é inerte precisa ser revista, haja vista o seu métier exigir
cada vez mais uma pró(du)-(a)tividade[86].
Cabe agora ao juízo monocrático e às Cortes de Justiça ou órgãos colegiados a
obrigação de fazer valer as leis, a Constituição e os valores insculpidos em
tratados internacionais, especialmente aqueles que tratarem de direitos
humanos. De tal maneira, axiomas como a soberania estatal ou o princípio da
independência nacional podem ficar sujeitos a uma certa relativização ou
mitigação, em virtude da escancarada internacionalização.
Parte III
TENSÃO ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL
PÚBLICO E A SOBERANIA ESTATAL
Se há na vida terrena espaço para
cisão, divisão, desacordo moral razoável ou posições distintas entre pessoas
esclarecidas que, infelizmente, não são encaradas como complementares, mas
indissociáveis. Talvez fosse digna de consideração a tentativa de se perscrutar
as razões defensórias de pretensões com matizes inegavelmente opostos. Como
para toda tese há sempre uma antítese, no Direito isso fica ainda mais
evidente. A única obrigação da doutrina, especialmente pela dimensão analítica[87],
é elucidar conceitos, sedimentar métodos consistentes e condizentes com a razão
e segurança jurídicas. É neste contexto que se evidencia uma (im)possível
tensão, dentro do campo temático delimitado pelo texto – entre (i) a corrente
monista nacionalista e (ii) a corrente mista ou dualista.
1. Corrente monista nacionalista
A corrente monista nacionalista,
apodada de monismo com primazia do direito interno ou de teoria do “culto à
Constituição”, busca defender a prevalência da produção normativa emanada pelo
Estado. Este, visto como entidade integrada por um povo, território e poder
originário de mando, além de ter erigido um documento político-jurídico-social
chamado Constituição.
De tal forma, nota-se que o que se
intenta preservar é o status quo jurídico de uma Nação e
colocá-lo sob uma posição privilegiada em relação ao direito internacional
público. Com isso, em tese, havendo um conflito entre normas jurídicas de um
determinado país e princípios ou regras de um tratado ou convenção
internacional, dever-se-á ponderar em favor do direito nacional.
2. Corrente dualista
O dualismo talvez seja a corrente
intermediária entre o radicalismo ou purismo científico ou a uma tendência
narcisista em se observar os problemas embutidos no cenário
(trans)constitucional. Aquele é composto pelo binômio de que (a) o direito
internacional público deve transformar-se em direito interno e (b) de que não
haveria conflito de normas, pois ambos representam sistemas interdependentes,
inter-relacionados.
A partir dessa premissa, não haveria
nenhuma antinomia ou tensão, mas concessões recíprocas a partir de uma análise
casuística. Destarte, a ordem jurídica interna e a externa (internacional)
atuariam em planos separados, porém paralelos. Diz-se também que este é o
modelo do dualismo paralelo. A tese é a de que há diferença
das fontes, diferença dos sujeitos e diferença dos
mecanismos garantísticos.[88] Esta
é a corrente adotada no Brasil, embora haja uma aguda divergência.[89]
A consequência prática, no campo do
direito dos tratados, é a de que para um tratado ratificado produza seus
efeitos no ordenamento jurídico interno, constitui como imperiosa a edição de
um ato normativo nacional – em terras brasileiras, conhecido como decreto de
execução, exarado pelo Chefe do Poder Executivo, com vistas a conferir execução
e cumprimento ao tratado ratificado no âmbito interno. Este é o pensamento
majoritário da doutrina vigente. Embora seja esse o quadro atual, cumpre-se
defender tese oposta, a de que a interpretação deve ser a de que para os
tratados de direitos humanos, assim que ratificados, devem irradiar
imediatamente seus efeitos na ordem jurídica internacional e interna,
tornando-se despicienda a edição de um decreto de execução.[90]
Parte IV
PRINCÍPIOS E REGRAS: UMA BUSCA
(IM)PRESCINDÍVEL DE CRITÉRIOS DISTINTIVOS
1. O polimorfo discurso na teoria
jurídica
A
dogmática jurídica não é a mesma de outrora. Se a ciência é uma ramificação
gnosiológica imbuída de raízes rígidas, fixas ou anatomicamente consistentes,
com o Direito não poderia ser diferente. Todavia, nota-se no oxigênio
intelectual uma fluidez, incerteza e histeria de conceitos e perda de certos
parâmetros.
O
ambiente atual é o da celeridade, presteza e velocidade nas soluções. O
pragmatismo começa a medrar como um vírus inoculado em um organismo depredado
imunologicamente. Assim, vê-se discursos apopléticos e desesperados a favor dos
festejados princípios jurídicos. A letra da lei já não desfruta do mesmo valor
que antigamente, o que fez com que os textos jurídicos fossem lidos não como
repertórios apartados da realidade, mas conectados com a famosa tríade
realeana: fato, valor e norma.
Com
isso, rompeu-se drasticamente com o paradigma bizantino da exegese bas
fond de interpretar o texto legal simplesmente apreendendo o
significado dos termos inscritos em um Código, sem nenhuma relação com os
fatos, os valores e as normas em sentido amplo. Ao mesmo tempo, foi assim que
uma série de juristas começaram a misturar conceitos e, não raras vezes,
confundir o conceito de um instituto ou termo com a sua aplicação.
O
polimorfismo discursivo e temático virou objeto da constância dos tempos e
passou a constituir o pecado capital da teoria jurídica, que não conseguiu
encontrar uma segurança metodologicamente infusa, mormente na elaboração de
critérios distintivos para as regras e os princípios jurídicos. Utilizando uma
figura de linguagem, a garrafa que era de vidro despedaçou-se, cabendo agora a
criação de um material novo e resistente.[91]
A
situação piora quando qualquer estudioso intenta pesquisar na literatura o que
já foi dito e escrito sobre o assunto. Infelizmente, grande parte se assusta
pela imensidão da produção doutrinária, desistindo sem pestanejar. Para não
transformarmos este texto em opúsculo retórico, adentremos no campo da
distinção entre princípios e regras, sem olvidar, é claro, de pincelar uma
situação prática. Costuma-se acentuar que as regras são enunciados descritivos
de condutas embebidos de definitividade[92] e
os princípios são mandamentos de optimização que são aplicáveis prima
facie, consideradas as possibilidades fáticas e jurídicas.[93]
Como
a interpretação exige a intermediação da linguagem para que prospecção de um
sentido se realize efetivamente, só a partir da intelecção do autor com o
objeto cognoscente é que se pode falar em normas ou possibilidades de normas.
No dizer de Humberto Ávila: "Normas não são textos nem o conjunto deles,
mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos
normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da
interpretação; e as normas, no seu resultado."[94] Quer
dizer, pode-se metaforicamente afirmar que um bombom lacrado é o direito em
estado inercial.
Para
que a ordem jurídica acompanhe a fluidez da vida social o jurista precisa
dinamizar o próprio Direito. Neste desiderato, cabe ao exegeta retirar
lentamente o bombom do seu envoltório para que não estrague a forma dele, seja
espicaçando a sua cobertura ou introduzindo involuntariamente a segunda camada
do chocolate. Após a retirada de todas as camadas, retirar-se-á o
produto de todo o manuseio: o sonho de valsa. A mesma operação ocorre no campo
jurídico. No caso das regras, é possível extrair a ideia de que a função da
regra é realizar a subsunção da hipótese jurídica atraída pela verificação de
que o fato da vida ocorreu. O encaixe do fato com a previsão legal é resumido
na aplicação da regra. Por exemplo: existe uma regra constitucional que impede
que haja uma re-reeleição para certos cargos políticos.
Assim,
aplica-se categoricamente o texto normativo por uma incidência inaudita
altera pars. Segundo o insigne Pontes de Miranda: "o que
caracteriza a regra jurídica, como lei, é a incidência. O fato, em si-mesmo,
não surte eficácia; é preciso que a lei incida sôbre êle, que o faça jurídico:
do fato jurídico é que ela dimana."[95] Desta
forma, não há espaço, em princípio, para a discussão referente à colisão entre
princípios e regras, tendo em vista a hipótese até aqui versada. Destarte, não
cabe a um Presidente da República reeleito se candidatar para um terceiro
pleito. A candidatura deverá, consequentemente, ser indeferida pela Justiça
Eleitoral.
Diferentemente
ocorre quando se trata de discorrer a propósito dos princípios. Até porque,
sempre se ressalta o aspecto qualitativo e axiológico neles encontradiço, o que
reforça a carnavalização, a euforia principialística e a importação acrítica de
um arsenal teórico, independentemente de uma filtragem teórico-metodológica. O
doutrinarismo ganhou uma forma proteiforme e uma solidez disforme, sem falar
que o que parece vigorar é a mera reprodução daquilo que interessa ou
corresponde à pretensão daquele que cita uma tese importada.
Nesta
toada, atrofia-se a alma do reprodutor da tese em cima de um punhado de ideias
produzidas por um terceiro que mereceria um estudo analítico e agudo.
Reconhecendo a tarefa hercúlea em se estabelecer critérios robustos da diagnose
diferencial das duas categorias das normas retrocitadas, convoca-se o leitor
para o que se entende por regras e princípios jurídicos, salientando o
significado plúrimo dos últimos, além de sua aplicação assíntota na órbita
teórica brasileira.
2. Importância da distinção metodológica no cenário
transconstitucional
Após
a constatação teórica e prática de que não cabe mais falar em um modelo e, mais
ainda, somente em uma realidade constitucional, impende registrar que se
avizinha um cenário irremediavelmente transconstitucional. Às vezes de índole
única ou de qualidade binária, como um corpo bipartido em qualificações
simbióticas, indissociáveis. Separar um corpo com características essenciais de
lados tão ontológicos é problematizar, não mitigar o maior problema da
contemporaneidade, a saber, a balança da complexidade e da relatividade.
Como
o pêndulo das decisões humanas poderá inclinar-se para a esquerda ou direita a
depender da preferência pessoal de cada um, quando se trata de princípios e
regras a situação não tem sido diferente. É certo que, diante de situações fáticas
em si mesmas complexas ou, conforme acentua Ronald Dworkin, nos famosos hard
cases[96],
não pode o intérprete atuar subsuntivamente[97].
Há outras formas de realizar e efetivar os valores plasmados no sistema
jurídico e na Constituição. Com isso, tornar-se essencial diferençar os
princípios e regras, ambos os instrumentos a serviços do Direito para a
persecução de um fim comum, qual seja, a Justiça.
A
doutrina moderna busca gizar uma diferença metodológica entre as normas, porém
sem ressaltar o aspecto proteico, multilateral ou poliédrico inerente à
capacidade institucional de órgãos judicializados, apenas para exemplificar, do
Tribunal Penal Internacional, da Corte Internacional de Justiça, da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, da Corte Europeia de Direitos Humanos e da
Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Alguns sustentam uma cisão
estrutural entre ambos, outros procuram evidenciar a distinção entre as normas
no que tange à qualidade. Mais ainda, há aqueles que entendem notória a
dessemelhança, tendo em vista a teleologia embutida na regra insculpida e no
princípio expresso ou implícito.
Antes
de se propugnar por uma única e incólume classificação dos princípios e das
regras, saliente-se que a intenção é transmitir a polaridade existente em ambos
e a contribuição até então para o discurso polimorfo da teoria jurídica
brasileira. Sem dúvida esse é um dos maiores dilemas da atualidade. Mesmo
assim, é importante e talvez salutar que se intente esboçar, ainda que de modo
insuficiente ou precário, a distinção metodológica entre um e outro no
horizonte transconstitucional. É o que se tentará fazer.
2.1. Regras como enunciados prescritivos
A
quase insuplantável parte da doutrina e da jurisprudência ratificou o
entendimento no sentido de que as regras constituem uma prescrição emanada por
um texto jurídico, cujo caráter macroscópico é enunciar um comando definitivo,
retilíneo e linear. Os princípios regentes são a segurança jurídica, a garantia
da estabilidade do direito positivo e a observância das decisões judiciais, o
que reforça a pretensão de se ter um sistema judicial calcado pela
previsibilidade. Portanto, o compósito das regras se aproxima com o escopo
catártico intuído pelo legislador em se estabelecer balizas determinadas sobre
o que se entende por proibido, permitido e obrigatório.
Respeita-se
o Legislativo, a produção legiferante e o produto microscópico natural: legislação.
No entanto, sabe-se também que é possível rastrear da região nuclear dos
princípios as indigitadas regras ou comandos definitivos, o que é intuitivo a
partir dos fatos e não meros ornamentos retóricos. Sem redundar, é claro, no
brocardo contra factum non argumentum est.
2.2. Princípios como deveres aplicáveis prima
facie
Até
o presente momento, tem-se como noção magistral acerca dos princípios a do
jurista alemão Robert Alexy. Segundo pontua há uma distinção qualitativa entre
as regras e os princípios, mas ambos consubstanciam um dever aplicável diante
do fato da vida. A única peculiaridade é que os princípios possuem uma carga
elástica, uma jurídico-plasticidade que autoriza o intérprete a utilizá-los
para preencher zonas ocas. Se a linguagem é o véu do ser e é o que nos forma
desde o nascedouro biológico, há de haver uma forma de extirpar controvérsias,
dúvidas, ambiguidades dessa mesma linguagem. Agora, que fazer quando ela é
aberta, ampla, suscetível a interpretações?
Como
cada vida é singular e particular, é perfeitamente plausível que um mesmo
princípio seja aplicado para pretensões incompatíveis de per si. O
que pode parecer uma contradição é um dado incontornável da facticidade. Hoje,
no alvorecer do século XXI, talvez nem mesmo Picard sustentaria piamente a
imutabilidade dos princípios, já que nem mesmo as regras deixam de sofrer os
contrastes da contínua e permanente evolução dos tempos. O diferencial neste
atual estágio é a interdisciplinaridade contributiva do porvir, que significa
açambarcar diversas áreas do conhecimento, embrenhar-se em outros setores das
ciências sociais e até das ciências da natureza visando uma resposta sistêmica,
abrangente de um problema posto à apreciação.[98]
Portanto,
ressalte-se que a expressão princípio é bastante fluídica e às vezes não tem o
devido refinamento linguístico e jurídico. No caso particular do Direito isso
só parece estar mais bem situado no plano interno, porém no âmbito
internacional é ainda mais difícil estatuir pilares tão fixos e imperecíveis,
especialmente quando se forem observados a infinidade de ordenamentos
jurídicos. O que se deve preservar e laurear é a capacidade de
argumentação jurídica, a coerência e a cientificidade, tríade dependente, sem
deixar de atestar a perpétua mutação da vida, dos costumes, das regras, dos
princípios.[99]
Apesar
das dificuldades ínsitas na busca de um conceito suficientemente palatável do
que se consideraria um princípio, tal empreitada será mais aprofundada a
posteriori.[100] Por
isso, diz-se que princípio é toda a norma jurídica que consagra valores e fins
a serem realizados. Enquanto o princípio cuida do processo de adequação social
(abertura do sistema), tendo em tela a sua amplitude semântico-jurídica, a
regra faz parte do processo do fechamento do sistema (rigidez do sistema).[101] A
singeleza conceitual é apreensível, porém só é possível captar o significado do
termo após verificar o que se entende como valor e fim.
CONCLUSÃO
Mais
uma vez se encerra uma etapa. No caso deste trabalho, tentou-se delinear alguns
apontamentos sobre o quadro atual do constitucionalismo, que já não se limita
ao vetusto discurso e famigerada constatação histórica, o de que há uma
Constituição, notadamente após a epopeia da Assembleia Constituinte de
1987-1988, dotada de supremacia formal e material em relação às outras normas
jurídicas, estas de hierarquia inferior. Fortifica-se, assim, o escalonamento
kelseniano.
No entanto, no cenário atual vigora uma profusão de decisões tribunalícias, cujo efeito jurídico se protrai no tempo e se espalha no espaço. Se a violação aos direitos fundamentais e humanos é proteica e parece não conhecer escala nas horas, cabe à jurisdição o papel legítimo e disciplinar de repreender condutas à cata da perversidade, desconsideração, elisão. E não é porque a justiça de determinado país não pune condutas internacionalmente reprimíveis que se deve prostrar e deixar o desespero esvair a fagulha da esperança de um futuro melhor.
O papel central é cravar na realidade jurídica mundial a ideia de que as Cortes de Justiça com jurisdição supranacional, cujo intento é preservar e zelar pela integridade dos direitos humanos e dos tratados internacionais, podem também empreender um juízo negativo ou positivo acerca do acerto ou desacerto das decisões dos tribunais nacionais. Não que se sustente o controle das decisões judiciais por um Tribunal Internacional, mas se deve (re)pensar na possibilidade de um controle da convencionalidade mais efetivo, seja potencializando e acelerando o direito à pretensão indenizatória, seja suspendendo o efeito de uma decisão para que se possibilite uma reconsideração. De qualquer maneira, independentemente do acolhimento das sugestões aventadas, espera-se que a semente tenha sido plantada para que os porvindouros estudos tornem-se frutos e alimentem gerações.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2 Auflage. Frankfurt am Main, 1994.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos
princípios.
10 ed., São Paulo: Malheiros, 2009.
______.
Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. Revista Eletrônica de Direito do
Estado (REDE),
Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 17,
janeiro/fevereiro/março, 2009.
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NOTAS
[1] Graduando
em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da UNIME – União Metropolitana
de Educação e Cultura.
[2] Este
texto foi escrito sob as auspiciosas observações e orientação de Angelo
Boreggio, Mestre em Direito pela PUC/SP; Mestre em educação pela UFMT,
Especialista em processo tributário pela PUC/SP, em direito tributário, penal e
público pela ESUD/MT. Ex-Superintendente do PROCON-MT, atualmente é professor
titular UNIME e da FRB - Faculdades Ruy Barbosa - nas cadeiras de Direito do
Consumidor e de Direito Tributário. Professor do JUSPODIVM - cursos
preparatórios para concurso. Advogado militante. E-mail: angelobneto@ig.com.br
[5] Niklas
Luhmann, Soziale Systeme: Grundriß einer allgemeinen Theorie,
4. Auflage, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991 p. 282: “In diesem Sinne ist die
Welt multizentrisch - aber so, daß jede Differenz die anderen dem eigenen
System oder dessen Umwelt einordnen kann”.
[7] Nesta
toada, v. Fábio Ulhoa Coelho, Para entender Kelsen, 4ª ed., 2001,
p. XV: “Nesta discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de
conferir à ciência jurídica um método e objeto próprios, capazes de superar as
confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica. Foi com
este propósito que Kelsen propôs o que denominou princípio da pureza,
segundo o qual método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa
básica, o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado
como norma (e não como fato social ou como valor transcendente). Isso valia
tanto para o objeto quanto para o método.”
[8] Luís
Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2009, p. 240.
[9] V.
Fábio Ulhoa Coelho, Para entender Kelsen, 4ª ed., 2001, p. 32: “Na
Rússia de outubro de 1917, o cientista do direito deveria afastar a norma
hipotética ‘obedeçam o governo provisório de Kerensky, instaurado em março com
a derrubada do Czar’, pela norma ‘obedeçam os conselhos populares (soviets)’”.
[12] George
Marmelstein, Curso de direitos fundamentais, 2ª ed., 2009, p. XXII:
“O direito, em qualquer sentido que se dê à palavra, é impregnado de ideologia.
Nele, há disputas políticas, conflito de interesses, valores colidentes em
constante tensão. É ingenuidade pensar que a atividade do jurista resume-se a
uma mera escolha técnica de qual a norma a ser aplicada ao caso concreto. Vai
muito mais além. No âmbito dos direitos fundamentais, essa constatação é ainda
mais clara. Imagine temas como o aborto, a eutanásia, as cotas para negros em
universidades, o casamento gay etc. Querer discutir temas tão
polêmicos de forma “neutra”, isenta de paixão ou sentimento, é
ilusão”.
[13] George
Marmelstein, op. cit., p. 5: “Confisco de bens, esterilização, tortura,
experimentos médicos com seres humanos, pena de morte, deportação, banimento:
tudo isso era praticado de forma regular pelos membros do Terceiro Reich, sob o
comando de Hitler, como se fosse algo perfeitamente normal. Essa prática
mecanicista de atos de crueldade sem qualquer questionamento acerca de sua
maldade intrínseca representa aquilo que a filósofa Hannah Arendt chamou de
‘banalidade do mal’. Havia, no caso, todo um aparato estatal funcionando de
forma burocratizada, estruturado para cometer as maiores atrocidades em nome do
Estado”.
[14] Foi
somente após as condenações empreendidas pelo Tribunal de Nuremberg, que se
passou a calcificar a dignidade da pessoa humana como o baldrame axial acima da
lei e do próprio Estado. Como salienta George Marmelstein, op. cit, 2009, p.
10: “Com o término da Segunda Guerra Mundial e a queda do regime nazista, os
juristas europeus, especialmente os alemães, passaram por uma profunda crise de
identidade, típica de qualquer fase de transição. O nazismo foi como um banho
de água fria para o positivismo kelseniano, que até então era aceito pelos
juristas de maior prestígio”.
[15] Rudolf
von Jhering, Der Kampf um’s Recht, 1894, p. 1: “Das Ziel des Rechts
ist der Friede, das Mittel dazu der Kampf”.
[16] Luís
Roberto Barroso, op. cit., p. 242: “Sem embargo da resistência filosófica de
outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século, a decadência do
positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do
nazismo na Alemanha. Esses dois movimentos políticos e militares ascenderam ao
poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da
lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a
obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Até mesmo a segregação
da comunidade judaica, na Alemanha, teve início com as chamadas leis
raciais, regularmente editadas e publicadas. Ao fim da Segunda Guerra
Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da
lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto,
já não tinha aceitação no pensamento esclarecido”.
[18] Na
Constituição alemã, cf. art. 1, 1: “A dignidade da pessoa humana é intocável.
Observá-la e protegê-la é dever de todos os poderes estatais”. Texto original:
“Die Würde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist
Verpflichtung aller staatlichen Gewalt”.
[20] V. John
M. Roberts, op. cit., p. 430-431: “It is not just a matter of the
scale and intensity of brutality and destructiveness made possible by the
capacities of industrial societies. Great atrocities have taken place in the
past whose precise extent we can never measure, and the subjective and relative
impact of which we cannot imagine, because the mental and cultural context is
so hard to understand. Doubtless, too, innumerable acts of appalling cruelty
have been lost in oblivion. The most exquisite deliberate tortures, physical
and mental, have been inflicted by human beings on one another (and were
repeated between 1939 and 1945; many who did not themselves suffer in the evil
of the Holocaust died under them).”
[21] Cf.
Marcelo Neves, Transconstitucionalismo, 2009, p. 129: “O que
caracteriza o transconstitucionalismo entre ordens jurídicas é, portanto, ser
um constitucionalismo relativo a (soluções de) problemas
jurídico-constitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens.
Quando questões de direitos fundamentais ou de direitos humanos submetem-se ao
tratamento jurídico concreto, perpassando ordens jurídicas diversas, a
‘conversação’ constitucional é indispensável”.
[22] Marcelo
Neves, op. cit., 2009, p. 121: “A questão do transconstitucionalismo não se
refere, portanto, à referência inflacionária à existência de uma Constituição
em praticamente toda nova ordem jurídica que emerge com pretensão de autonomia.
Não interessa primariamente ao conceito de transconstitucionalidade saber em
que ordem se encontra uma Constituição, nem mesmo defini-la como um privilégio
do Estado. O fundamental é precisar que os problemas constitucionais surgem em
diversas ordens jurídicas, exigindo soluções fundadas no entrelaçamento entre
elas”.
[23] Cf.
J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição,
7ª ed., 2003, p. 1425 e ss.
[24] Carta
das Nações Unidas, art. 78: “O sistema de tutela não será aplicado a
territórios que se tenham tornado Membros das Nações Unidas, cujas relações
mútuas deverão basear-se no respeito ao princípio da igualdade soberana”.
[26] Uadi
Lammêgo Bulos, op. cit., p. 92-93: “No transconstitucionalismo propriamente
dito, ordenamentos distintos se interagem e somam esforços conjuntos para
resolverem casos complexos e difíceis. O que predomina é a superação do
constitucionalismo provinciano ou paroquial em nome de algo maior: a integração
cooperativa, pacífica e desterritorializada de ordens estatais diferentes. Cada
Estado continua com a sua soberania e vida própria. Ocorre, apenas, uma
integração harmoniosa entre ordens constitucionais de Estados completamente
diferentes, algo que está acima de quaisquer simpatias ou antipatias,
camaradagens ou disputas pessoais, muito menos institucionais. Para solucionar
conflitos envolvendo direitos humanos, duas ou mais Cortes de Justiça, de
Estados diferentes, rompem suas barreiras territoriais e abandonam o regionalismo
em nome da conversação e do diálogo constitucional”.
[27] Afinal,
toda norma ou é uma regra ou um princípio. Neste sentido, v. Robert
Alexy, Theorie der Grundrechte, 2 Auflage. Frankfurt am
Main, 1994, p. 77: “Jede Norm ist entweder eine Regel oder ein Prinzip”.
[28] Cf.
Nelson Nery Jr., Princípios do processo na Constituição Federal,
10ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 325-326: “Os tratados
internacionais que versam sobre direitos humanos ingressam no direito interno
brasileiro como norma constitucional, desde que aprovados pelo
quórum qualificado para as emendas constitucionais (CF 5º §3º). O Pacto de San
José da Costa Rica, tratado de direitos humanos que estipula a garantia ao
processo com duração razoável (CIDH 8º §1º), ingressou no direito brasileiro
interno antes da EC 45/04, que exige o quórum qualificado da CF 5º §3º. É
revestido, portanto, do status de norma constitucional,
nos termos da regra tempus regit actum, motivo pelo qual esse
status constitucional é dado pela CF 5º §2º”.
[29] É
o que defende parcela respeitável da doutrina. Apenas a título demonstrativo,
cf. Valerio Mazzuoli, Curso de direito internacional público, 5ª
ed., 2011, p. 817-847; Valerio Mazzuoli, A tese da Supralegalidade dos
Tratados de Direitos Humanos; Luiz Flavio Gomes. Conflito entre a
Constituição brasileira e os tratados de direitos humanos. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1.734, 31 mar. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11100>.
Acesso em: 1 mar. 2013; Dirley da Cunha Jr., Curso de direito
constitucional, 4ª ed., 2010, p. 634-650; Flávia Piovesan, Direitos
humanos e o direito constitucional internacional, 12 ed., 2011, p. 124:
“Reitere-se que, por força do art. 5º, §2º, todos os tratados de direitos
humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são
materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade”.
[31] Sobre
a expressão no campo consumerista, v. Claudia Lima Marques, Antônio Herman
Benjamin e Bruno Miragem, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor,
3. ed., 2010, p. 30-63.
[32] A
sentença foi proferida em 26 de setembro de 2006. Informação obtida em consulta
feita na obra de Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito
constitucional internacional, 12 ed., 2011, p. 20.
[34] Paulo
Henrique Gonçalves Portela, Direito Internacional Público e Privado:
incluindo noções de direitos humanos e de direito comunitário, 4ª ed., 2012, p.
794.
[37] Neste
sentido, v. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, 3ª ed.,
1970, t. I, p. XI: “É fácil compreender-se qual a importância que têm a
exatidão e a precisão dos conceitos, a boa escolha e a nitidez dêles, bem como
o rigor na concepção e formulação das regras jurídicas e no raciocinar-se com
elas. Seja como fôr, há sempre dúvidas, que exsurgem, a respeito de fatos, que
se têm, ou não, de meter nas categorias, e da categoria em que, no caso
afirmativo, se haveriam de colocar. Outras, ainda, a propósito dos próprios
conceitos e das regras jurídicas, que têm de ser entendidas e interpretadas.”
[38] Cf.
Rudolf von Jhering, Die passive Wirkung der Rechte, Jahrbücher für die
Dogmatik, 1871, p. 387: “A ciência deve ser verdadeiramente prática, mas
não se limitar ao prático”.
[39] Afinal,
as análises e estudos realizados acerca do novo constitucionalismo demonstram a
falta de universalização das conclusões, mormente no que se refere às suas
consequências, a origem e os possíveis malefícios inerentes ao fortalecimento
do judicial review. Para uma pesquisa atilada dessas implicações na
Nova Zelândia, em Israel, no Canadá e na África do Sul, cf. Ran Hirschl, Towards
juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism,
2007, p. 17-30.
[41] Como
se sabe, o STF é competente para julgar a ADIn, ADEcon, ADIn por omissão, ADPF
e mandado de injunção, além das matérias previstas no art. 102 da CF/88. Por
isso, além da inegável conclusão de que há um campo dilargado para o exercício
de sua jurisdição e do seu múnus constitucional, imperioso sustentar ainda a
multiplicidade de matérias espraiadas no Texto Constitucional que, para a
remansosa doutrina, caracteriza-se como analítico ou prolixo.
[43] Sobre
as particularidades do referido Caso Araguaia, cf. Ana Luisa Zago de Moraes, O
“Caso Araguaia” na Corte Interamericana de Direitos Humanos, Revista
Liberdades, n. 8, 2011, p. 89: “A importância da condenação é enorme, uma
vez que corresponde à expectativa de diversos movimentos sociais brasileiros e
internacionais, além do próprio Ministério da Justiça e da Secretaria Nacional
de Direitos Humanos, que visam à promoção da verdade e da memória como direito
humano, que não pode ser tolhido por medidas estatais que omitem fatos
históricos como assassinatos e desaparecimentos forçados durante a Ditadura
Militar brasileira”.
[44] Dirley
da Cunha Jr., op. cit., p. 637-645: “A essa abertura material podemos
denominar, com apoio em Jorge Miranda, de não tipicidade dos direitos
fundamentais. Em face dela, entendemos que a Constituição brasileira
reconhece a fundamentalidade material dos direitos fundamentais, na medida em
que se associou a um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais.
Desse modo, são encontradiços na nossa Constituição não só os direitos formal e
materialmente fundamentais (a maioria dos direitos fundamentais previstos no
catálogo), mas também os direitos só formalmente fundamentais (de que são
exemplos os contidos no art. 5º, incisos XXVIII e XXIX e art. 7º, incisos XI e
XXIX) e tão-só materialmente fundamentais (estes situados fora do catálogo da
Constituição ou até mesmo fora da própria Constituição, como se verá,
identificados pelo conteúdo comum baseado no princípio da dignidade da pessoa
humana)”. E conclui: “Esses direitos materialmente fundamentais, como já
sublinhado acima, identificam-se por seu conteúdo comum baseado no princípio da
dignidade da pessoa humana. Com base neste princípio fundamental, reconhecem-se
os direitos materialmente fundamentais, sejam implícitos, decorrentes ou
previstos em tratados internacionais. A dizer, a abertura material a novos
direitos fundamentais implica que estes devam ser reconduzidos de forma direta
e corresponder ao valor da dignidade da pessoa humana”.
[46] Para
uma preciosa análise do caso e das possíveis soluções para casos futuros
(compensatórias, processuais e sancionatórias), cf. Aury Lopes Jr., Direito
processual penal, 10. ed., 2013, p. 209-219.
[47] Conforme
aduz Valerio Mazzuoli, Curso de direito internacional público, 5.
ed., 2011, p. 890: “A Corte detém uma competência consultiva (relativa
à interpretação das disposições da Convenção, bem como das disposições de
tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos) e
uma competência contenciosa, de caráter jurisdicional, própria para
o julgamento de casos concretos, quando se alega que algum dos Estados-partes
na Convenção Americana violou algum de seus preceitos. Contudo, a competência
contenciosa da Corte Interamericana é limitada aos Estados-partes da Convenção
que reconheçam expressamente a sua jurisdição. Isto significa que um
Estado-parte na Convenção americana não pode ser demandado perante a Corte se
ele próprio não aceitar a sua competência contenciosa. Ocorre que, ao
ratificarem a Convenção Americana, os Estados-partes já aceitam automaticamente
a competência consultiva da Corte, mas em relação à competência contenciosa,
esta é facultativa e poderá ser aceita posteriormente. Este foi o meio que a
Convenção Americana encontrou para fazer com que os Estados ratificassem a
Convenção sem receio de serem prontamente demandados. Tratou-se de uma estratégia
de política internacional que acabou dando certo, tendo o Brasil aderido à
competência contenciosa da Corte em 1998, por meio do Decreto Legislativo nº.
89, de 3 de dezembro desse mesmo ano, segundo o qual somente poderão ser
submetidas à Corte as denúncias de violações de direitos humanos ocorridas a
partir do seu reconhecimento (perceba-se, aqui, a cláusula temporal de
aceite do Brasil à competência contenciosa da Corte Interamericana: somente se
poderá demandar o Brasil perante a Corte a partir desse reconhecimento”.
[48] Sobre
a natureza e conteúdo mínimo da dignidade humana, cf. Luis Roberto
Barroso, A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação.
Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010.
[49] Neste
sentido, v. Nelson Nery, op. cit., p. 326: “Contudo, isso não exime o Estado
brasileiro de responder por violação a direitos humanos – e a duração
exagerada do processo é uma dessas violações, por descumprimento da
CIDH 8º §1º -, por duas razões: a) trata-se de norma prevista em tratado
internacional com vigência no Brasil (CF 5º §§2º e 3º); b) trata-se de princípio
constitucional expresso na CF 5º LXXVIII”. Com esteio no pensamento do
internacionalista Augusto Cançado Trindade a favor da internacionalização dos
direitos do homem, inclusive considerando o direito de petição e a
intangibilidade da jurisdição verdadeiras cláusulas pétreas de proteção
internacional dos direitos do homem, cf. Iracema Fazio, O alcance da jurisdição
da Corte Interamericana de Direitos do Homem, Revista Jurídica da
Faculdade de Ciências Jurídicas da Unime, v. 2, 2012, p. 31: “são estas
cláusulas que tornam viável o acesso dos indivíduos à justiça internacional.
Ademais, some-se à elas o dever de fiel cumprimento, por parte dos Estados
Partes nos tratados de direitos do homem, das decisões daqueles tribunais,
assim como o exercício da garantia coletiva pelos Estados Partes”.
[50] Entendendo
o princípio da culpabilidade como um meio de limitação à violação (Das
Schuldprinzip als Mittel der Eingriffsbegrenzung), cf. Claus Roxin, Strafrecht.
Allgemeiner Teil. 4 Auflage., 2006, p. 91-95.
[51] Em
sentido favorável à tese aqui defendida, cf. cf. Ana Luisa Zago de Moraes, O
“Caso Araguaia” na Corte Interamericana de Direitos Humanos, Revista
Liberdades, n. 8, 2011, p. 90: “Filiamo-nos ao entendimento de que deve
prevalecer a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que
a posição estatalista, vinculada à ‘Supremocracia brasileira’, vai de
encontro à nova ordem constitucional brasileira, humanista e democrática, bem
como ao teor das obrigações internacionais paulatinamente assumidas pelo
Brasil, graças a numerosas convenções relativas aos Direitos Humanos firmadas e
incorporadas à ordem jurídica pátria, além das normas de jus cogens.
Dentre as Convenções que corroboram a posição da Corte, estão a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, a Convenção para Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio e a Convenção Americana de Direitos Humanos, e, dentre as
normas de jus cogens, encontra-se o imperativo de os Estados
reprimirem os crimes contra a humanidade, dentre eles os
desaparecimentos forçados e a tortura”.
[52] Flávia
Piovesan, op. cit., p. 158: “Logo, na hipótese de eventual conflito entre o
Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, adota-se o
critério da prevalência da norma mais favorável à vítima. Em outras palavras, a
primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da pessoa
humana. A respeito, elucidativo é o art. 29 da Convenção Americana de Direitos
Humanos, que, ao estabelecer regras interpretativas, determina que “nenhuma
disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e
exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em
virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em
que seja parte um dos referidos Estados”. Consagra-se, assim, o princípio da
normas mais favorável, seja ela do Direito Internacional, seja do Direito
interno. A escolha da norma mais benéfica ao indivíduo é tarefa que
caberá fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores
do Direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano”
(grifos nossos).
[53] Tal
expressão foi proferida em uma palestra em 1862, por Ferdinand Lassalle, Über
Verfassungswesen. Conteúdo disponível em: http://www.gewaltenteilung.de/lassalle.htm.
[54] Pontes
de Miranda, op. cit., p. 6: “Para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que
regras jurídicas – isto é, normas abstratas – incidam sôbre
eles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os ‘jurídicos’. Algo
como a prancha da máquina de impressão, incidindo sôbre fatos que se passam no
mundo, pôsto que aí os classifique segundo discriminações conceptuais”. E
continua: “a regra jurídica há de ser igual para todos os fatos da mesma classe
(isonômica). À lei é essencial colorir fatos, tornando-os fatos do mundo
jurídico e determinando-lhes os efeitos (eficácia deles). Se a lei trata por
igual fatos da mesma classe, a eficácia dêsses fatos será a mesma, se
considerarmos qualquer dêles”.
[55] Luis
Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalização do
direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil, p. 26:
“A partir de 1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a
Constituição passou a desfrutar já não apenas da supremacia formal que sempre
teve, mas também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela
abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios. Com
grande ímpeto, exibindo força normativa sem precedente, a Constituição
ingressou na paisagem jurídica do país e no discurso dos operadores jurídicos”.
[57] Tal
reflexão foi fruto de uma profícua conversa travada com o filósofo e Professor
Carlos Costa.
[58] Pontes
de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 1978, t. XVII,
p. 321: “Toda obra de ciência – e de direção dos povos – exige dedicação e
amor. Sem isso, não se constrói. Para que alguma tradição cultural se forme, ou
se mantenha, é preciso que haja espíritos capazes de sacrifício e de
convicções, que dêem o máximo de si mesmos à sua obra”.
[59] Para
uma ferrenha crítica a propósito da discricionariedade dos juízes, cf. Lenio
Streck, O que é isto – decido conforme minha consciência?, 2010, p.
47: “Se fizermos uma análise do problema ‘de como decidir’ à luz da filosofia
da linguagem, ficará evidente que as teorias que apostam na vontade do
intérprete (e esse é, efetivamente, ‘o problema’ do ‘livre
convencimento’) acabam gerando/possibilitando discricionariedades e
arbitrariedades. (...) Por sua vez, no direito constitucional, essa
perspectiva é perceptível pela utilização descriteriosa dos princípios,
transformados em ‘álibis persuasivos’, fortalecendo-se, uma vez mais, o
protagonismo judicial (nas suas diversas roupagens, como o decisionismo, o
ativismo, etc). O uso da ponderação é também nesse ramo do direito outro
sintoma de uma espécie de ‘constitucionalismo da efetividade’, pelo qual o
mesmo ‘princípio’ é utilizado para sustentação de teses antitéticas”.
[60] Virgílio
Afonso da Silva, Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In:
Virgílio Afonso da Silva (org.), Interpretação constitucional,
2005, p. 135-136.
[61] A
propósito da terminologia, cf. Leonardo Athayde Luna, Direito e
Interpretação: uma busca interdisciplinar, artigo publicado na Revista
Jurídica da Faculdade de Ciências Jurídicas da Unime. Disponível em: http://revistafcjunime.blogspot.com.br/.
[62] Sobre
a expressão, v. texto mimeografado por Leonardo Athayde Luna, Judicialização,
ativismo judicial e a preservação da democracia: uma convivência possível
diante de paralaxes interpretativas.
[63] Há
farta produção doutrinária acerca da expressão e das implicações referentes (a)
à sua defesa; (b) opróbrio e (c) até, no âmbito da discricionariedade judicial,
ao estabelecimento de limites procedimentais, éticos e de conteúdo. Neste
trilhar polifacetado, cf. Luiz Guilherme Marinoni, Teoria geral do
processo, 6ª ed., 2012, p. 40-46; Fredie Didier Jr., Curso de
direito processual civil, vol. 1, 11 ed., 2009, p. 25: “Vive-se,
atualmente, uma fase de renovação do estudo do Direito Constitucional. Há
diversas manifestações disso: a) parte-se da premissa de que a Constituição tem
força normativa e, por consequência, também têm força normativa os princípios e
os enunciados relacionados aos direitos fundamentais; b) pela expansão da
jurisdição constitucional (controle de constitucionalidade difuso e
concentrado, como é o caso do Brasil); c) desenvolvimento de uma nova
hermenêutica constitucional (com a valorização dos princípios e o
desenvolvimento dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade). A essa
fase deu-se o nome de Neoconstitucionalismo ou pós-positivismo.”
[64] Países
como a Alemanha e Itália serviram de norte paradigmático para o estudo do novo
constitucionalismo, sobretudo com a criação das Cortes Constitucionais e a
promulgação de Constituições que romperam com um passado nada democrático.
Nesse trilhar, costuma-se ressaltar o marco histórico inerente ao
constitucionalismo do pós-guerra nos retro mencionados países, sobretudo no que
tange à Lei Fundamental de Bonn (1949), o que fez com que se criasse o Tribunal
Constitucional Federal, em 1951. Na Itália, um pouco antes: “l’Assemblea
costituente si accinse ad elaborarei l texto della Costtituzione della
Repubblica italiana (approvato poi il 22 dicembre 1947, promulgato dal Capo
dello Stato il 27 dicembre ed entrato in vigore il 1º gennaio 1948)”. Vê-se que
a Constituição da Itália foi aprovada em 1947, o que fez com que se tornasse
iminente a instalação da Corte Costituzionale, em 1956, instalação prevista no
art. 134, in verbis: La Corte costituzionale giudica: sulle controversie
relative ala legittimità costituzionale delle leggi atti, aventi forza di
legge, dello Stato e delle Regioni; sui conflitti di attibuzione tra i poteri
dello Stato e su quelli tra lo Stato e le Regioni, e tra le Regioni; sulle
acuse promosse contro il Presidente della Repubblica, a norma della
Costituzione”. Informações obtidas no sítio http://www.cortecostituzionale.it,
visitado em 18 de janeiro de 2013.
[65] O
termo neopositivismo é bastante amplo, máxime por possuir semântica referente
ao próprio desenvolvimento da Filosofia Analítica, ao Positivismo Lógico ou ao
que se convencionou chamar de Empirismo Lógico. A linguagem passou a ser
estudada pela Semiótica, que abarca todos os mínimos esquemas de comunicação.
Com isso, praticamente todas as classes científicas se enredaram por estudar,
em clima intelectualmente cooperativo e contributivo, os limites das aporias,
dubiedades e epiquiremas dos textos a serem lidos. No campo das Ciências
Jurídicas isso é muito emblemático, principalmente no campo interpretativo.
Percebe-se, portanto, a importância da associação e interdisciplinaridade.
Nesta esteira, cf. Gisele Leite, Neopositivismo, neoconstitucionalismo e o neoprocessualismo:
o que há realmente de novo no direito?, Revista Eletrônica Temas Atuais
de Processo Civil, vol. 2, n. 5, 2012; Uadi Lammêgo Bulos, op. cit.,
73: “Em nossa opinião, o grande contributo do Neopositivismo para o Direito
Constitucional foi deixar a mensagem de que não há linguagem quimicamente pura,
em qualquer dos planos por onde percorra (sintático, semântico ou pragmático).
Daí as imprecisões, ambiguidades e contradições nos artigos, incisos e alíneas
das constituições, muitas vezes dissociados de uma visão rigorosa e sistemática
do mundo”. Apesar dessas preambulares conclusões, consequentes dos
limites textuais do presente artigo, é preciso separar o joio do trigo, para
que não fiquemos reféns de um pavoroso rodeio de absurdidades com carga
meramente retórica, mas vazia de conteúdo científico. Emprestar ao
neopositivismo um significado parelho ou anexo ao neoconstitucionalismo depende
primeiro da interiorização da camada filosófica incrustada no famigerado
Círculo de Viena. Neste sentido, cf. Miguel Reale, Filosofia do direito,
19 ed., 2000, p. 9: “Ora, a Filosofia do Direito, esclareça-se desde logo, não
é disciplina jurídica, mas é a própria Filosofia enquanto voltada para uma
ordem de realidade, que é a ‘realidade jurídica’. Nem mesmo se pode afirmar que
seja Filosofia especial, porque é a Filosofia, na sua totalidade, na medida em
que se preocupa com algo que possui valor universal, a experiência histórica e
social do direito. O direito é realidade universal. Onde quer que existe o
homem, ai existe o direito como expressão de vida e de convivência. É
exatamente por ser o direito fenômeno universal que é ele suscetível de
indagação filosófica.” Por estas e outras razões é que, consoante Miguel Reale,
op. cit., p. 7: “a Filosofia representa um perene esforço de sondagem nas
raízes dos problemas. É uma ciência cujos cultores somente se considerariam
satisfeitos se lhes fosse facultado atingir, com certeza e universalidade,
todos os princípios ou razões últimas explicativas da realidade, em uma plena
interpretação da experiência humana”. Mais ainda, é preciso investigar a fundo
o próprio positivismo enquanto rudimento filosófico, tendo uma relação
umbilical com as obras de Immanuel Kant e Augusto Comte. Conforme aponta Miguel
Reale, Introdução à filosofia, 4ª ed., 2002, p. 140: “O relativismo
positivista baseia-se na apreciação do saber como saber positivo de ‘relações’,
que marcaria a terceira fase evolutiva da Humanidade, superando os chamados
estados ‘teológicos’ e ‘metafísico’. Há certa coincidência entre o kantismo e o
comtismo, porque ambos excluem o absoluto da possibilidade do conhecimento,
contrapondo-se à Metafísica tradicional. Ressalta, porém, a diferença essencial
na natureza das respostas, porque partem os dois pensadores de pressupostos
diversos, podendo-se dizer que Comte, infenso a qualquer subjetividade a
priori, estabelece uma correlação progressiva entre o processar-se dos
fenômenos e o pensamento que no real encontra a fonte de seu desenvolvimento. O
mestre do positivismo não apresenta, com efeito, qualquer a priori em
sua concepção relativismo do mundo, no qual as formas distintas do saber se
compõem em um ‘organismo unitário do conhecimento’, do qual se deduzem as
diretrizes ordenatórias da vida prática, ou da Política”.
[66] Norberto
Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito, São
Paulo: Ícone, 1995, p. 229-232.
[67] Pablo
Martín Perot, Inconstitucionalidad, legalidad y orden jurídico. Discusiones,
Bahía Blanca, n. 2, 2001. Disponível em <http://bibliotecadigital.uns.edu.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1515-73262001000100007&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso em 11 jan. 2013.
[68] Cf. SARMENTO, Daniel. Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e
possibilidades. In: Por um constitucionalismo inclusivo: história
constitucional brasileira. Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 233-272.
[69] Luís
Roberto Barroso, Constituição, democracia e supremacia judicial: direito
e política no Brasil contemporâneo, p. 10: “a ideia de ativismo judicial
está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na
concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no
espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há
confronto, mas mera ocupação de espaços”.
[70] Luis
Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2009, p. 5:
“Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da
lei (Estado de direito, rule of the law, Rechtsstaat).”
[71] Conforme
destacamos em um texto mimeografado, cf. Leonardo Athayde Luna, Judicialização,
ativismo judicial e a preservação da democracia: uma convivência possível
diante de paralaxes interpretativas, p. 20-21: “A judicialização tornou-se
a ordem do dia, mormente em países que passaram por momentos de violência
institucional ou paralisação do relógio democrático. (...) Mas, há um conjunto
de fatores que propiciaram este fenômeno, tais como a reconstrução da
ciência jurídica, muito influenciada a partir da
constitucionalização e o surgimento de uma nova postura de
pensar o Direito, que não está mais afunilado em determinado campo ou em
uma partícula estanque do conhecimento. Agora, ele passa a enveredar-se para um
viés gnosiológico globalizante, importando-se, pois, com as relações entre a
Filosofia, a Ética, a História, o Direito Comparado, a Política. Passou-se a
exigir daqueles que manuseiam o instrumental jurídico o chamado estrabismo
interpretativo, uma maneira elástica de observar a experiência jurídica.”
[72] Para
uma percuciente crítica a propósito das diversas posições adotadas pela
judicatura de um modo geral, cf. Cass Sunstein, Radical in robes: why
extreme right-wing courts are wrong for america, 2005.
[73] Luis
Roberto Barroso, op. cit., p. 266: “Foram afetadas premissas teóricas,
filosóficas e ideológicas da interpretação tradicional, inclusive e notadamente
quanto ao papel da norma, suas possibilidades e limites, e ao papel
do intérprete, sua função e suas circunstâncias. Nesse ambiente, ao
lado dos elementos tradicionais de interpretação jurídica e dos princípios
específicos de interpretação constitucional delineados ao longo do tempo, foram
descobertas novas perspectivas e desenvolvidas novas teorias. Nesse universo em
movimento e em expansão, incluem-se categorias que foram criadas ou
reelaboradas, como os modos de atribuição de sentido às cláusulas gerais, o
reconhecimento de normatividade aos princípios, a percepção da ocorrência de
colisões de normas constitucionais e de direitos fundamentais, a necessidade de
utilização da ponderação como técnica de decisão e a reabilitação da razão
prática como fundamento de legitimação das decisões judiciais.”
[74] Para
uma visão geral sobre a temática, v. Luís Roberto Barroso,
Neoconstitucionalismo e constitucionalização (O triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil).
[75] Konrad
Hesse, Grundzüge des Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland,
20. Auflage, 1999, p. 10: “Die Verfassung ist die rechtliche Grundordnung des
Gemeinwesens”.
[77] Para
uma análise histórica e elucidativa das diversas formas de se interpretar, cf.
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 18 ed.,
1999, p. 44-50.
[78] Cf.
Robert Alexy, op. cit., p. 72 e ss. Na
literatura brasileira, v. Virgílio Afonso da Silva, Direitos
fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, 2ª ed., 2011, p.
45: “O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria
dos princípios, é a estrutura dos direitos que essas normas garantem. No caso
das regras, garantem-se direitos (ou se impõem deveres)
definitivos, ao passo que no caso dos princípios são
garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie”.
[80] Para
uma científica crítica ao paradigma ponderativo, cf. Humberto Ávila,
Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. Revista
Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto
Brasileiro de Direito Público, nº 17, janeiro/fevereiro/março, 2009, p. 9-10:
“o paradigma da ponderação conduz a um subjetivismo e, com isso, à eliminação
ou severa redução do caráter heterolimitador do Direito. Uma norma jurídica (ou
mandamento) diferencia-se de um conselho por dever ser considerada e por dever
servir de orientação para a conduta a ser adotada. Um conselho é aquilo que não
precisa ser levado em consideração, mas mesmo que o seja, não necessariamente
precisa orientar a conduta a ser adotada. Além de dever servir de critério
orientador da conduta, um mandamento caracteriza-se por se externo e autônomo
relativamente ao seu destinatário: o mandamento só exerce sua função de guia de
conduta se for independente do seu destinatário. E para ser independente do seu
destinatário, ele precisa ser por ele minimamente reconhecível antes da conduta
ser adotada.” Mais à frente: “Se quem faz é o próprio destinatário, ele mesmo
termina por guia a sua conduta, o que conduz à eliminação do caráter heterolimitador
do Direito. O próprio destinatário da norma, que deveria agir seguindo sua
prescrição, termina por definir o seu conteúdo, decidindo, ele próprio, o que
deve fazer. Se quem faz a ponderação é o Poder Judiciário, sem critérios
antecipados e objetivos para sua execução, aquilo que o destinatário deveria
saber antes ele só ficará sabendo depois, o que leva à supressão do caráter
orientador do Direito e da função legislativa. O aplicador da norma, que
deveria reconstruir um sentido normativo anterior e exterior, acaba por
construí-lo, decidindo, ele próprio, o que a Constituição atribuiu ao Poder
Legislativo definir”.
[82] Luis
Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2009, p. 382-383: “A
constitucionalização, na linha do argumento aqui desenvolvido, expressa a
irradiação dos valores constitucionais pelo sistema jurídico. Essa difusão da
Lei Maior pelo ordenamento se dá por via da jurisdição constitucional, que
abrange a aplicação direta da Constituição a determinadas questões; a
declaração de inconstitucionalidade de normas com ela incompatíveis; e a
interpretação conforme a Constituição, para atribuição de sentido às normas jurídicas
em geral. (...) Ao lado desse exercício amplo de jurisdição constitucional, há
um outro fenômeno que merece ser destacado. Sob a Constituição de 1988,
aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade
brasileira. Em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela
conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Em seguida, pela
circunstância de haver o texto constitucional criado novos direitos,
introduzido novas ações e ampliado a legitimação ativa para tutela de
interesses, mediante representação ou substituição processual. (...) Pois bem:
em razão desse conjunto de fatores – constitucionalização, aumento da demanda
por justiça e ascensão institucional do Judiciário -, verificou-se no Brasil
uma expressiva judicialização de questões políticas e sociais,
que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final”.
[83] Sobre
a expressão e as suas implicações no mundo prático, cf. Leonardo Athayde
Luna, A precedentalização do sistema romano-germânico brasileiro: da
supremacia da lei para a importância do judge make law.
[84] Cf.
Luiz Guilherme Marinoni, Teoria geral do processo, 6ª ed., 2012, p.
43: “Recorde-se que o princípio da legalidade, no Estado legislativo, implicou
na redução do direito à lei, cuja legitimidade dependia apenas da autoridade
que a emanava. Atualmente, como se reconhece que a lei é o resultado da
coalizão das forças dos vários grupos sociais, e que por isso frequentemente
adquire contornos não só nebulosos, mas também egoísticos, torna-se evidente a
necessidade de submeter a produção normativa a um controle que tome em
consideração os princípios de justiça”.
[85] A
remissão à decisão quantitativa é eloquente, justamente na pós-modernidade que
parece primar pela celeridade processual e na aparente produtividade do Poder
Judiciário. Quanto mais decisões proferidas, independentemente da qualidade,
melhor.
[86] Cf.
Luiz Guilherme Marinoni, op. cit., p. 22: “A transformação da
concepção de direito fez surgir um positivismo crítico, que passou a desenvolver
teorias destinadas a dar ao juiz a real possibilidade de afirmar o conteúdo da
lei comprometido com a Constituição. Nessa linha podem ser mencionadas as
teorias dos direitos fundamentais, inclusive a teoria dos princípios, a técnica
da interpretação de acordo, as novas técnicas de controle da
constitucionalidade – que conferem ao juiz uma função “produtiva”, e não mais
apenas de declaração de inconstitucionalidade – e a própria possibilidade de
controle da inconstitucionalidade por omissão no caso concreto.”
[87] Segundo
o raciocínio alexyano, é possível distinguir três dimensões da dogmática
jurídica: uma analítica, uma empírica e uma normativa. Para uma prospecção
acerca da tríade dimensão, cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte,
1994, p. 22-27.
[89] Jorge
Bacelar Gouveia, op. cit., p. 295: “O monismo, que
conta hoje com um maior número de adeptos, frisa, pelo contrário, os diversos
aspectos que têm feito aproximar as naturezas do Direito Internacional e do
Direito Estadual, exatamente naqueles mesmos argumentos: – na proximidade
nas fontes: se é verdade que os tratados internacionais, enquanto tal, não
têm paralelo no Direito Estadual, não é menos verdade que, ao nível interno, há
já sinais de intensa ‘contratualização legislativa’, para além do facto de no
Direito Internacional serem relevantes outras fontes, como o costume, que é
estruturalmente idêntico ao costume interno, que também se considera aplicável;
– na coincidência de sujeitos: não pondo em causa o maior pendor
institucional do Direito Internacional, não se pode também dizer que outros
sujeitos, como a pessoa humana, não sejam directos destinatários das suas
normas, sendo ainda de considerar que o Estado, ao nível interno, é também
destinatário dos actos jurídico-públicos que ele próprio dimana; – na diversificação
dos mecanismos de garantia: o ponto de partida quanto à perfeição do
aparelho estadual de coerção nem sempre é verdadeiro, com o recurso cada vez
mais frequente às soluções arbitrais, ao mesmo tempo que, no plano
internacional, se tem privilegiado a consolidação das estruturas jurisdicionais,
de que o recente TPI vem a ser um exemplo”.
[90] Neste
sentido, cf. Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito
constitucional internacional, 12 ed., 2011, p. 144-145.
[91] Nelson
Nery Jr., op. cit., 10 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010,
p. 35: Talvez o pecado mais sério da doutrina hodierna seja o de tratar o tema
mediante sincretismo, vale dizer, misturando-se as teorias que se
utilizam de critérios e parâmetros distintos uns dos outros".
[92] Luís
Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, 2009, p. 207.
[97] O
analista do direito pode até fazer isso, mas nem sempre conseguirá obter uma
interpretação condizente com o que se entende por equitativo ou conforme a
Constituição (Verfassungskonforme Auslegung). A lógica impõe que para
casos complexos as soluções não podem ser simples. Sobre a terminologia alemã,
v. Konrad Hesse, op. cit., p. 30-31.
[98] Neste
ponto, observou Pontes de Miranda, À margem do direito: ensaio de
psychologia jurídica, 1912, p. 146-147: “Edmond Picard allude a umas
verdades supremas e immutaveis do Direito, especie de dogmas, a que dá apenas a
roupagem mo-derna de « princípios », quando cm ver-dade não há regras fixas e
immutaveis em direito, se não processos logicos de appli-cal-o e de adquiril-o,
esses mesmos colhidos por uma contorsão, por um excesso c ousadia intellectual
que em tudo vê ele-mentos capazes de posição logica em nosso espirito. O que ha
de immutavel no direito é a unidade de experiencia social, a pedra basilar
sobre que se assediam todas as for-mações socíaes meramente jurídicas, o fundo
commum e psychologico da moral e da sa-bença jurídica dos homens”.
[99] Pontes
de Miranda, op. cit., p. 147: “No tempo não há senão a variabilidade das leis,
como só existe a mutabilidade dos costumes, das usanças e das formações
proloquiaes, que se colorem e se embotam mais tarde, que se desvanecem e se
succedem, por mercê da mutação perpetua, que é condição da vida”.
[100] Para
um estudo crítico e amplo sobre a matéria, sugere-se texto da lavra de Humberto
Ávila, A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, nº 4, 2001.
[101] Marcelo
Neves, op. cit., p. 63: “Do lado do direito, cabe definir a sua racionalidade
específica como ‘justiça’. Essa implica, em relação ao sistema jurídico, a
‘consistência jurídica’ no plano da autorreferência (fechamento normativo) e a
‘adequação’ ou ‘adequada complexidade’ à sociedade (abertura cognitiva),
especialmente dos processos de decisão de casos jurídicos, sendo caracterizada
como uma ‘fórmula de contingência’ porque motiva a ação e a comunicação no
âmbito jurídico”.
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